Existe em Gilles Deleuze esta ideia de que a arquitectura é, a um tempo, uma arte e uma máquina de guerra. A Arquitectura é uma máquina de guerra quando é normativa, quando impõe o conformismo, quer este seja totalitário ou democrático. Procede-se aí um rapto do devir do ser, a uma captação da energia do ser, até ao seu esgotamento. Mas a arquitectura é também uma arte, e até mesmo uma arte iniciática, quando ela conduz o indivíduo a reaproximar-se de si, do seu próprio ser, da sua própria realidade intrínseca, que é também liberdade.
 
A máquina de guerra é alienante, está enfeudada à relação entre o arquitecto e o príncipe, entre o criador e o poder. A arquitectura como arte visa uma intensificação de certos aspectos do espaço. Segundo a nossa relação com o espaço, cairemos na maquinização guerreira ou na arte iniciática.
 
No tempo de Newton e de Descartes, um debate opunha aqueles que consideravam o espaço como um dado, independente dos objectos que o habitam, e aqueles que pensavam que o espaço era constituído pelas relações entre os objectos. A primeira hipótese levou a melhor pois ela permitia aplicações matemáticas e físicas que a segunda não permite. Todavia, a segunda é de um grande interesse iniciático, tanto no plano de uma arquitectura interna como no de uma arquitectura externa, os dois planos sendo inseparáveis. O externo é a projecção do interno mas o externo nutre o interno através de um efeito espelho permanente. Ao intensificarmos certas relações entre os objectos, certas linhas, nós modificamos o mundo.
 
Através da linguagem, eu crio, eu constituo, eu organizo o mundo, um espaço externo e um espaço interno, um tempo externo e um tempo interno, um «Outro» fora, um «Outro» em mim mesmo, uma língua externa, uma língua interna (note-se que o criador é bilingue na sua própria língua). Contudo, tudo o que se apresenta – seja o «Outro», seja um acontecimento, uma sensação, um sentimento, um pensamento, ausentes ou presentes – é um objecto no seio da consciência. O interno ou o externo estão juntos no seio da consciência. A separação não existe, apesar de assim aparecer.
 
George Steiner ensina-nos que a arquitectura deveria fazer parte do novo quadrívio, juntamente com a música, as matemáticas, e as ciências da vida. Durante uma conferência, ele confidenciou que, para ele, actualmente, a arquitectura era verdadeiramente a única arte criadora e inovadora.
 
Parece-me que a arquitectura está destinada a reconciliar o homem consigo próprio, com o mundo e, talvez, com os deuses. Ela é uma arte terapêutica no sentido antigo do termo, a therapia. Ela une o Céu e a Terra, mas também a a Terra e a Água, a Água e o Céu, por vezes o Subterrâneo com o Céu. Dou, não por prova, pois a prova é impossível, mas por indício, várias realizações exemplares: aquelas que contemplam o Tejo quando chegamos a Lisboa por mar; os desafios iniciáticos de Sintra, da Pena, o Palácio da Vila, ou a Regaleira, entre outros; muito recentemente, o novo Museu das Civilizações da Europa e do Mediterrâneo, o MuCEM de Marselha, do arquitecto Rudy Ricciotti; e, quanto ao que nos reúne aqui hoje, a obra espantosa de Raul Lino.
 
Se a Arte é iniciática e se a arquitectura é Arte, logo, a arquitectura é iniciática, o que é demonstrado desde há séculos pela ciência tradicional dos construtores, e particularmente, pelo Compagnonnage e seus arcanos. Para melhor apreender o processo iniciático até à sua finalização, que será sempre não dual, fui levado a distinguir entre Iniciação no Jardim e Iniciação na Cidade. Será interessante observar se esta distinção tem sentido no campo da arquitectura.
 
Esta distinção, Iniciação no Jardim, Iniciação na Cidade, não deixa de lembrar a oposição clássica entre a filosofia do Jardim, de que a principal figura é Epicuro, e a filosofia na Cidade, incarnada por Platão, mas não pode ser reduzida a esta oposição. Lembremo-nos também que Descartes (que não foi o único) quis negar que a Natureza fosse uma deusa. A Iniciação no Jardim não é cartesiana, também não afirma que a Natureza seja uma deusa; entre as duas, faz uma escolha por livre vontade de encantamento.
 
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A Iniciação na Cidade assenta na pavimentação, no trabalho sobre a pedra, na construção, pedra após pedra, na repetição da forma, no seu apuramento, na sua rectificação com vista à edificação.
 
A Iniciação no Jardim é uma arte da tecedura, da malha, da teia, da criatividade, da mutação e da travessia das formas.
 
A replicação está no âmago da Iniciação na Cidade, que visa a permanência das formas, a sua duração, o seu prolongamento, a sua reprodução idêntica. Semelhante iniciação releva da imitação, já voltaremos a este ponto. Nela se procede à celebração do antigo. Este processo iniciático está inscrito na memória, na cultura, na temporalidade.
 
O processo iniciático posto em prática no Jardim é, pelo contrário, uma celebração do instante, do imediato, um reconhecimento do efémero, da impermanência e do intemporal.
 
O modelo de organização iniciático na Cidade é a Loja, de onde vem a palavra «alojamento». Note-se que os iniciados se deslocam para a Loja. Deslocam-se para um lugar fixo que encarna o objecto do seu desejo espiritual. A Loja acolhe o que Louis-Claude de Saint-Martin designou como «os Homens de Desejo»[2], aqueles em quem despontou o desejo de se conhecerem a si próprios.
 
A organização da Loja é fortemente hierarquizada em torno da autoridade artificial das funções. A transmissão no seio da Loja é piramidal. A Loja é o lugar onde são propostos os saberes tradicionais. A Loja é o lugar do saber e da Experiência. A palavra «alojada» circula de cima para baixo e de baixo para cima. A deslocação de Loja em Loja está submetida ao controlo hierárquico.
 
Os mecanismos de satisfação dos desejos gregários, dos desejos de pertença e de reconhecimento são constitutivos da vida da Loja e dos seus membros. A referência externa é dominante, exprime-se pela Regra, e a linguagem está impregnada de operadores modais de necessidade (eu devo; eu tenho de; é preciso que...). O saber é esperado vindo do outro, de fora, ainda que por vezes seja «de fora em si mesmo». Esta tendência é de tal ordem que os disfuncionamentos correntes da Loja se traduzem pela procura da arbitragem ou do reconhecimento profano. Esta organização acaba por impossibilitar o Companheirismo tradicional, quando, no entanto, é isso que justifica a Iniciação na Cidade. A realização da Obra-prima é muitas vezes esquecida, ficando-se apenas pelo conceito de obra-prima, da sua ideia.
 
A organização no Jardim é uma desorganização que deixa emergir uma harmonia natural, baseada sobre uma hierarquia movente de competências, em perpétua transformação, para se adaptar ao carácter efémero dos fenómenos. O Jardim está onde está o iniciado. Os habitantes do Jardim trazem o jardim neles próprios. Eles são o Jardim, sem o constituírem. O encontro é o lugar da partilha do Conhecimento e da «Imperiência». A transmissão é não-hierárquica e silenciosa. O primado do Companheirismo é afirmado. A Obra-prima é realizada. A alternativa nómada e a circulação das elites constituem uma modalidade fundamental da Iniciação no Jardim. Por «elite», não devemos entender uma «meritocracia» estabelecida pelo fazer e pelo ter, mas antes aqueles que conheceram a eleição mistérica conferida pelo sufrágio do Silêncio. Os desejos de pertença e de reconhecimento estão ausentes, só importa a realização da sua própria natureza, original e derradeira.
 
A Iniciação na Cidade está estabelecida em torno de constrangimentos. A doutrina é privilegiada como objecto do saber. A Cidade estabelece, aliás, listas de objectos iniciáticos e não-iniciáticos (como o alimento, a tecnologia, a sexualidade…) tal como distingue o profano e o sagrado, nos espaços exteriores como nos espaços interiores. A Cidade cria espaços fechados, regras de passagem, portas e becos. Estamos no mundo das antinomias, onde reina o uso aristotélico da linguagem[3]. A Iniciação na Cidade suscita o desejo mimético. O objecto iniciático é desejado por imitação. O irmão mais velho, ou a irmã mais velha, aparece na sua potência mediadora. O iniciador é um mediador.
 
A Iniciação no Jardim não rejeita de maneira nenhuma o desejo. Axializa-o. É o desejo em si, um desejo sem objecto. O iniciador é despertador. Ele desperta-nos para aquilo que É, ou seja, para o Si. Em ambos os casos, não existe transmissão, pelo menos no sentido habitual de «transferência» temporal ou até espacial de um legado iniciático. O conceito de «transmissão tradicional» é demasiadas vezes um apego da «pessoa», do «eu», do ego, que quer ligar e ligar-se em vez de desligar. Este enviesamento perceptual secundário pode ser temporariamente útil, mas não merece a hipertrofia que lhe conferem várias correntes tradicionais, que vivem coladas a formas dualistas.
O Jardim é aberto, mas enquanto o iniciado da Cidade mostra-se e demonstra-se, o iniciado do Jardim oculta-se. «Para viver livres, vivamos ocultos», diz o Mestre Jardineiro. Ninguém sabe exactamente onde começa e onde acaba o Jardim. Ele manifesta a Liberdade que caracteriza o Ser em si. A errância é aí encorajada. No Jardim, não há objecto iniciático e objecto não-iniciático. Qualquer situação pode beneficiar de um tratamento iniciático. Não é a situação externa e interna que importa, mas sim a relação de consciência mantida com a situação, que a torna a própria matéria da Obra. Privilegia-se a prática. «Se a doutrina te incomoda, rejeita a doutrina, mas aprofunda a prática», sugere ainda o Mestre Jardineiro. A iniciação, desengano integral, quer-se uma ortopraxia, mais do que uma ortodoxia.
 
A Cidade promove as organizações iniciáticas, criações humanas, veículos imperfeitos e ecos muitas vezes longínquos das vias iniciáticas, que são, na sua essência, «não humanas», entenda-se «não condicionadas».
 
No Jardim, o ensinamento é como o bater de asas de uma águia. Uma palavra, um olhar, uma alusão, um silêncio, uma presença, um gesto, uma imobilidade despertam para o Grande real.
 
Na Loja, o ensinamento vem ainda carregado de procedimentos, de demonstrações, de formas, de construções simbólicas, todas necessárias. A Loja é por isso um lugar de memória, um espaço envolvente no qual tudo conta, tudo simboliza, tudo significa, por vezes até em excesso, podendo fazer esquecer, pela contracção da identidade e da nominalização, que o Ser é o seu próprio sentido.
 
Na Loja, a praxis, aquilo que fazemos sem conhecer claramente a finalidade e na ignorância das consequências reais – uma prática esconde muitas vezes uma outra, inaudível e não recebível pelo ego – é de suma importância. No Jardim, a praxis cede o lugar à poiesis[4], a acção que faz coincidir a origem e o fim, convergindo-os para o não-fazer.
 
Com Lucian Blaga[5], poderíamos ainda dizer que a Iniciação na Cidade é modeladora. Ela ensina por imitação. A sua injunção é: «Sê como eu! Conforma-te ao modelo». A iniciação no Jardim é, pelo contrário, catalítica; ela ensina: «Sê apenas tu próprio! Deixa advir o que tu és».
 
Este esboço rápido é suficiente para que adivinhemos a natureza dualista e gradativa da Iniciação na Cidade, e a natureza não dualista e subitista da Iniciação no Jardim.
O iniciado na Cidade é um conquistador, inscrito no esforço, por vezes em sobresforço; quer progredir, evoluir, atingir o divino, etapa após etapa. É uma visão prometeica, típica da «pessoa», do «eu», do ego fascinado pelo devir. O iniciado na Cidade está ainda sob influência da «pessoa»; o Si ainda está oculto. Perdido no duplo constrangimento da Cidade de Deus e da Cidade dos homens, o iniciado na Cidade cai por vezes no facto faustiano.
 
A Iniciação na Cidade é artesanal, guerreira e sacerdotal. Encerra por isso a possibilidade de uma corrupção totalitária, bastando, para que ela surja, que a impostura do ego se imponha sobre a realeza do Ser. Pode revelar-se viciante.
 
A Iniciação no Jardim é «impremeditada» ao passo que a Iniciação na Cidade é «pós-meditada», em particular na sua implementação dos símbolos vivos activados pelo ritual. A primeira não deixa qualquer rasto, a segunda inscreve-se no rasto e prolonga-o. O iniciado no Jardim avança frente ao Sol sem que qualquer sombra seja projectada no solo. Nele não há ninguém.
 
O iniciado no Jardim é um poeta, um fazedor – palavra que define o alquimista –, um profeta do não-tempo, um teósofo. Ele sabe que tudo está já realizado, que ele não está em devir. Ele é o Absoluto; ele É. A Iniciação no Jardim não é conquistadora, é libertária, é uma «Recordação», segundo Hermes, uma «Reintegração», segundo Martines de Pasqually, um «Reconhecimento» da sua Liberdade Absoluta, segundo Mestre Eckhart, no Ocidente, bem como para Abinavagupta, no Oriente. O iniciado no Jardim está des-mascarado, é acéfalo. Nesse sentido, o iniciado no Jardim opõe-se ao profeta. É um hipo-feta, palavra forjada por Rabelais para designar aquele que se recorda do que já passou, do antigo. Mas este «antigo» é mais antigo do que o antigo, é original; é por isso que ele é totalmente novo e vanguardista, na sua expressão como na sua impressão.
 
No quadro das filosofias não dualistas, distinguimos correntemente quatro relações com o Real[6]. Recordemo-las brevemente:
 
1. Se o demandador compreende imediatamente que ele é o Absoluto, a demanda está terminada, aqui e agora, para sempre; ela nem veio a ter início. Tudo está cumprido.
 
2. Se ele não compreende o Absoluto, mas percebe o jogo da Consciência e da Energia, de Xiva/Shakti, da Absolutidade/Seidade, ele joga o jogo sem se deixar ludibriar.
 
3. Se o jogo da Consciência e da Energia continua a não ser conhecido pelo iniciado, então, ele respeita os ritos e as regras (a Regra absoluta sendo a ausência de regra e a liberdade infinita).
 
4. Se ele não compreende os ritos, então ele põe-se ao serviço da alteridade, ele serve o seu próximo, que ele crê ser outrem, quando o verdadeiro «próximo», mais uma vez, é aquele que surge em si próprio, o Si; literalmente: «aquele que se aproxima».
 
Note-se que no seio destas quatro relações aparecem quatro níveis de encontro:
 
1. O verdadeiro encontro, o único encontro, é «não dual». Nenhuma separação, apenas a Unidade. O próprio conceito de «encontro», ou qualquer outro conceito, está ausente da consciência não dual. Há plenitude. Nem objecto, nem sujeito.
 
2. O encontro «dual / não-dual» é amor livre, imediato, não condicionado, manifestado sem intenção numa dualidade não vivida como tal. Há «conhecimento» pelo espírito, não há um «saber». O objecto e o sujeito são percebidos no interior da consciência.
 
3. O encontro «dual consciente» apoia-se no jogo da consciência e da energia. A visão do jogo energético das compensações no seio da consciência dual é clara e a raiz do sofrimento surge na relação fictícia entre o sujeito e o objecto. Existe, no entanto, intenção e adesão da «pessoa».
 
4. Por fim, a forma mais relativa do encontro reside na consciência «dual identificada» com o sujeito. Este encontro relativo nasce de uma «pessoa» com outra «pessoa» e não de «Ser» com «Ser». É um encontro social e um acto de cidadania.
 
Já tivemos a ocasião de desenvolver de diferentes maneiras este quadrante, que não deve ser representado por uma escala, mas antes por um labirinto multidimensional e mutável. Este quadrante, «altruísmo; ritos; jogo da Consciência e da Energia; Absoluto», pode ser expresso por outros termos. Por exemplo:
 
• forma; símbolo; método; Despertar. Ou, no domínio da terapia:
• medicamentação e cirurgia; espagíria e medicina pelas plantas; alquimia e terapia energética; Despertar, que é a última cura.
• Por fim, de forma mais provocante: a tolice, que é o facto de crer compreender e passar ao acto; a idiotice, antídoto da tolice, que consiste em não compreender nada, bloqueio do pensamento, prelúdio do silêncio; depois, a loucura controlada; e, finalmente, o Despertar. Em qualquer dos casos, a Liberdade ou a Morte.
 
É este mesmo quadrante que está representado na Tradição arturiana pelas três Cavalarias do Graal. O Homem (ou a mulher) vulgar que, à custa de preparação e de mérito, se torna Cavaleiro, é introduzido numa Cavalaria terrestre, depois numa Cavalaria espiritual, por fim numa Cavalaria celeste. A essas três Cavalarias correspondem três conteúdos alquímicos diferentes do Graal[7].
 
Fernando Pessoa expressa a mesma ascensão através das três mortes e três saídas do túmulo. O homem condicionado, o homem vivido, o «cadáver adiado», descobre a Lei da Natureza. Ele é Hiram, morto para o mondo profano, reerguido do túmulo pela descoberta dos três assassinos que representam o triângulo arcaico: «poder - território - reprodução»[8]. Hiram parte à procura da Palavra Perdida, da qual ele tem o pressentimento. Ele torna-se Christian Rosenkreutz na abertura do seu livro, expondo o «Livro T», complemento do Liber Mundi. Christian Rosenkreutz conhece a Palavra mas apenas através do seu Símbolo. Ele intui-a. É a segunda morte, a morte para o mundo sagrado condicionado. Abre-se então um terceiro túmulo, vazio, desta vez. O demandador, pelo casamento divino, torna-se Cristo. Ele é a Palavra Livre.
Podemos ainda pensar de uma outra forma este processo que conduz a um não-processo. O ser humano está colado ao «conformismo», um conformismo que não é para ser entendido no sentido habitual, mas como toda e qualquer identificação ou adesão às formas. Sob a impulsão do Si, o ser humano revolta-se contra esta alienação. Essa revolta vai levá-lo a entrar em dissidência. Distinguiremos a dissidência pessoal, horizontal, da dissidência iniciática, vertical. A primeira opera uma revolução no seio da «pessoa», continua a ser egoica e temporal. A segunda opera uma «desvolução», ou seja, a saída de toda a evolução. Com efeito, a evolução é uma outra palavra para a temporalidade. Se a revolução «egoica» conduz invariavelmente a um novo conformismo e a novas identificações que reciclam os condicionamentos, a desvolução conduz à liberdade absoluta do Ser, à realização do Si.
 
Em arquitectura, talvez pudéssemos distinguir: uma arquitectura profana; uma arquitectura sagrada e simbólica; uma arquitectura imaginal (como aquela do «entre-dois-mares», de Sohravardi), lugar das teofanias, nomeadamente as do Quinto Império, do Encoberto e do Espírito Santo; e, finalmente, uma arquitectura metafísica, uma arquitectura sem arquitectura. A arquitectura profana gera pessoas condicionadas, os «cadáveres adiados» de Fernando Pessoa; a arquitectura sagrada apela ao indivíduo, à nossa parte indivisível, inalienável, aquela que permanece; a arquitectura imaginal apreende e precipita na forma as estruturas cosmogónicas, o plano de Deus, ou o plano do Grande arquitecto dos Mundos; finalmente, a arquitectura metafísica, que seria uma inconcebível liberdade.
A Iniciação na Cidade é geradora de mudanças favoráveis à «pessoa», mudança de comportamentos, de critérios, de valores, de crenças. A iniciação no Jardim traz consigo uma mudança de mudança radical, pois a ideia de mudança desaparece na experiência da Seidade. Se a iniciação na Cidade pode ser apreendida como uma mudança de paradigma, a iniciação no Jardim instaura um estado sem paradigma.
 
Para sair do labirinto, isto é, da organização, da representação, da história, da evolução e da temporalidade, para escapar ao condicionado e ao fenoménico, às relações entre os objectos exteriores (de Spinoza), temos de encontrar a passagem, a Mancha de Dom Quixote.
 
A chave da iniciação, a Linha de Silêncio que convém franquear pelo abandono, por um salto no vazio, situa-se nessa passagem sem porta entre os ritos e o jogo divino, da imitação à invenção, neste salto «quântico» entre dual e não dual, entre a Cidade e o Jardim.
 
A aparente oposição entre a Cidade e o Jardim é fruto do erro perceptual dualista. Convém substituir-lhe o princípio de uma articulação induzida pela própria etimologia da palavra «iniciação», e de instaurar assim uma dialéctica entre praxis e poiesis. A palavra provém do latim «initiatio», que, por sua vez, na época greco-romana, traduzia a palavra grega «telete». Mas enquanto a palavra initiatio expressa a ideia de passagem, telete veicula a ideia de finalização, de consumação. Enquanto initiato se baseia na imitação e na repetição, que é o que fazem os ritos, telete assenta na «libertação da própria libertação», para usar aqui a expressão de Nikos Kazantzaki. Qualquer via começa onde acaba a imitação e a repetição, onde se apaga a organização iniciática. Ela é realmente um abandono das formas, incluindo das formas sagradas como o são os ritos, para penetrar no Grande Real.
 
O caminho da iniciação prevê uma única inversão, passagem para o País do Silêncio onde a linguagem, a memória, os condicionamentos, os tempos, as formas, o múltiplo, o ter e o fazer, o reino do triângulo «poder – território – reprodução», cedem todo o lugar ao Ser, ao Intemporal, ao indizível, ao Um, à plenitude do Grande Nada. Esta passagem, em que tudo se inverte, assinala a renúncia à imitatio, para tomar a via da inventio, em que cada gesto, cada sopro, cada instante são, ao mesmo tempo, totalmente novos, totalmente consumados, totalmente únicos.
 
O iniciado realizado é um ser nu e livre, desnudado e liberto de todas as sobreposições culturais e cultuais, de todos os condicionamentos humanos, é um ser em silêncio, liberto da linguagem, veículo privilegiado dos condicionamentos. O iniciado não tem qualquer necessidade de nomear a Coisa. Ele é a própria Coisa. Ele é o próprio jogo da energia e da consciência, um jogo sem «eu», um jogo mudo sem bom nem mau pois a oposição obsessiva entre o «bem» e o «mal», característica da Cidade e das suas leis liberticidas, dissolve-se na Imperiência da Liberdade Absoluta.
 
Note-se que trata-se de passar de um labirinto a outro, do labirinto da Cidade, do qual convém sair, ao labirinto do Jardim que se desenvolve na Consciência livre[9]. Há identidade entre a ilusão e o Real. Esses dois labirintos apenas se diferenciam do ponto de vista da «pessoa» apegada ao dualismo. No seio da consciência não dual, esses dois labirintos são idênticos e reconhecidos como sendo da natureza do vazio. Eles estão, e não estão, na periferia da consciência.
 
A separação, ilusória, que pode exacerbar-se até tornar-se numa oposição, entre a Iniciação na Cidade e a Iniciação no Jardim, aparece apenas na experiência dual da Cidade que, pela sua construção, separa, constitui um «fora» e um «dentro». Todavia, a Cidade cria jardins no seu seio. Públicos, privados ou secretos, esses jardins, evocações do jardim original bem como do jardim derradeiro, são de facto lugares de intimidade, de internidade, onde o passante pode aproximar-se da sua própria essência livre. Note-se que algumas bibliotecas assumem plenamente a função de jardins iniciáticos. Pensamos nomeadamente na extraordinária Biblioteca Marciana de Veneza e na espantosa biblioteca do Palácio de Mafra, autênticos parênteses sagrados no rumor dualista.
 
A Cidade permanece um lugar fechado que confina a consciência, a reduz, por identificação, à «pessoa». O Jardim é um estado de consciência sem lugar. Para o iniciado da Cidade, na perspectiva da «pessoa», do ego, esses dois mundos, Cidade e Jardim, são radicalmente distintos. Contudo, a Cidade iniciática, lugar das necessidades e das restrições, abre sobre o Jardim iniciático, não-lugar das possibilidades infinitas. Para o iniciado no Jardim, no coração do Ser, no coração da plenitude do Vazio, esses dois mundos são um e não são. Um é o Outro. O Outro é o Um. Nem Um nem Outro. A ilusão e o Real, o relativo e o Absoluto são um só.
 
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O processo Construir – Habitar - Pensar e Pensar-se, no eixo da temporalidade e no eixo da espacialidade, pode conduzir ao Ser, ao Infinito, à Luz, pode reaproximar-nos da nossa axialidade solar ou, pelo contrário, despedaçar-nos, reduzir-nos, aniquilarmo-nos.
 
O arquitecto, o artista, têm uma altíssima responsabilidade na expressão dessa tensão criadora entre Cidade e Jardim. Parece-me que Raul Lino soube orientar a sua obra da Cidade para o Jardim, das periferias para o centro, procurando trazer o habitante, enquanto observador e testemunha, para «um mais elevado sentido». Ele fê-lo, creio eu, com elegância. A elegância, em arte iniciática, pode ser definida como a mais pequena mudança susceptível de gerar o maior efeito libertador para o ser. É um movimento criador, quase invisível, que cria uma divina surpresa.
 
Quando eu deambulo, como profano e como poeta, no labirinto das criações de Raul Lino, ele parece-me ser um adepto da arquitectura imaginal. Ele concebe num entremeio axial e constrói num entremeio horizontal e temporal, a partir de um centro único. Ele é simultaneamente mediador e passador, passador de um mundo fechado para um mundo aberto, da Cidade para o Jardim. No seu programa de construção de escolas, ele soube conciliar funcionalidade e beleza, racionalidade e imaginação, educação e iniciação. A sua vontade inclusiva levou-o a abrir os espaços para acolher o mundo, espaços nos quais os objectos determinam um centro onde o sujeito pode reencontrar-se consigo mesmo, tanto no isolamento como no encontro com o outro.
 
Esse entremeio, que inclui em vez de separar, é aparente na Casa de Santa Maria de Cascais, que une o Oceano e a Terra; na Casa dos Patudos, que une vila e a natureza; na Casa da Quinta da Comenda, que manifesta um ternário sagrado entre o Céu, a Montanha e o Oceano. Não é o Teatro Tivoli um templo onde o aparecimento do mundo vem descobrir-se no espelho da cena depois de lhe ter polido o ângulo até fazer uma amável redondeza?
 
A Casa dos Penedos de Sintra é como uma janela entre a Montanha e a extensão vasta que alcança o Oceano, entre o fechado e o aberto, o interno e o externo, o ventre e o espírito. Em inglês, é habitual designar-se a janela por «window», e, em espanhol, por«ventana»; ambas as palavras aludem ao vento, a janela pára o vento, protege do exterior. Em italiano, «finestra», em alemão, «fenster», e em francês, «fenêtre»; a palavra evoca, pela sua sonoridade, «la fin de l'être», o fim do ser, o fim do lugar do ser. A referência é interna, ao passo que com «window», a referência é externa. Mas em português, diz-se «janela». A palavra evoca Janus bifronte, duplo rosto, duplo olhar que reúne, ou, talvez, o entremeio, o imaginal. As casas de Raul Lino são exigentes. Elas não são ninhos, não são casulos para onde nos retiramos e nos cortamos do mundo; ou então, são ninhos de águia, exigem sempre a confrontação com o infinito visando a coincidência apaziguada dos contrários.
 
A dimensão do toque parece-me caracterizar as obras de Raul Lino. As suas casas tocam-nos e convidam ao toque, como se ele soubesse que o toque é o único sentido, que se prolonga em olfacto, gosto, visão pensamento. Penso, logo, toco. Sou tocado, logo, sou pensado. Esta casa torna-me mais vivo, pois ela enleva-me. Ela não está somente na minha consciência, eu estou vivo no seu olhar, no olhar desta casa. As casas de Raul Lino são vivas, procuram extrair-nos da tragédia da Cidade para nos levar rumo à tranquilidade e à sabedoria do Jardim. De um modo mais spinozista, eu diria que elas convidam a escapar à oscilação permanente do «eu» entre o pólo da tristeza e o pólo do júbilo para se orientar resolutamente para o pólo do júbilo. Segundo Spinoza, a tristeza interessa ao déspota e ao padre, pois ela mantém na submissão. Pelo contrário, o júbilo aumenta o poder de agir. As casas de Raul Lino veiculam os três níveis de conhecimento spinozista, o da relação com os objectos exteriores, o das noções comuns, e, por fim, o das essências singulares.
 
Raul Lino inscreve nas suas obras uma ordem cósmica percebida no imaginal, mas ele sabe que essa ordem não é uma ordem, nem uma mera disposição, sem contudo ser uma desordem. É um convite à escolha, à autonomia, a dar a si próprio a sua própria lei e o seu próprio nome, é um convite à liberdade.
 
Raul Lino é um despertador.
 
Os arquitectos são despertadores.


[2]Note-se que a própria natureza da consciência dualista é desejo e que a sua função é de produzir continuamente o que o filósofo Gilles Deleuze designa pela expressão «machines désirantes» [máquinas desejantes], cujo primeiro programa é a replicação. O «eu», a «pessoa», é uma máquina desejante e replicante. O homem de Desejo extrai-se da corrente e orienta a potência desejante e replicante rumo ao centro, ao coração. Estes são os primeiros passos de uma via cardíaca, que não deve ser confundida com as vias devocionais ou espiritualistas.
[3]Para uma abordagem não aristotélica da linguagem, ver os trabalhos de Alfred Kozybski, fundador da Semântica Geral.
[4]Trata-se de uma concepção não aristotélica da poiesis pois, para Aristóteles, a poiesis, acção de fazer em função de um saber, conduz à produção de um objecto exterior, uma obra, ao passo que a praxis não tem objecto fora dela própria, ela é a sua própria finalidade orientada para o bem. Os Gregos antigos davam à palavra poiesis, que deu o seu nome à poesia, o sentido de «trabalho», entendido como uma arte de tornar mais viva a matéria. Ela designa o trabalho do artesão ou do artista. A poiesis é a livre criação do ser humano, uma actividade não condicionada, não subordinada. A poiesis pressupõe uma tekne a não confundir com a simples tecnologia para produzir um objecto exterior. Não é o «fazer» mas sim um «não-fazer» que revela o Ser e pressupõe um domínio da Arte. As competências técnicas são menores e estão ao serviço de uma filosofia, de uma teosofia e de uma metafísica.
[5]Sobre Lucian Blaga, ler, de Ioana Lipovanu, a grande especialista de Blaga, Un Menhir, În umbra minus-cunoa șterii [Um Menhir, à sombra do menos-conhecimento] publicado em Bucareste nas edições Herald em 2001. Uma tradução francesa estará disponível brevemente.
[6]Este ponto já foi desenvolvido nomeadamente em Le Discours de Venise. Second manifeste incohériste, de Rémi Boyer, nas Editions Rafael de Surtis, 2007. ISBN 978-2-84672-108-0.
[7]Ler L’Amour Courtois, les Cathares, le Graal, três ensaios de Claude Bruley, Editions Rafael de Surtis, ISBN 2-84672-068-1 e Editinter, ISBN 2-915228-93-0 e Le Grand Œuvre comme fondement d’une spiritualité laïque. Le chemin vers l’individuation de Claude Bruley, Editions Rafael de Surtis. ISBN 978-2-84672-139-4.
[8]Ponto desenvolvido em La Franc-maçonnerie comme voie d’éveil. Co-edição Rafael de Surtis, 2006. ISBN 2-84672-067-3 e Editinter ISBN 2-915228-90-6. Publicado em português pelas edições Arcano Zero, com o título A Tradição Maçónica e o Despertar da Consciência (N.T.)
[9] O Labirinto, de Lima de Freitas, Edições Arcadia, Lisbonne, 1975.